Cem Anos

segunda-feira, novembro 03, 2003

Ilhas e Pontes

É difícil, hodiernamente, ser-se coerente com a nossa personalidade e comportamento moral; numa altura em que a honestidade, a justiça e a honra são - mais do que palavras -atitudes e comportamentos em desuso, torna-se complicado adoptar uma moral, uma filosofia em que entrem aqueles valores sem nos sentirmos deslocados no espaço, quiçá no tempo.

Numa era em que o sucesso individual está sobrevalorizado e em que a riqueza, a ambição, a promoção sócio-profissional são valores absolutos, isto é, são um fim em si mesmas, damos connosco a pensar se estamos desajustados da sociedade moderna ou se, por outro lado, esta mesma sociedade entrou numa crise de valores. A verdade é que somos hoje, cada vez mais, colocados perante situações para as quais as nossas respostas não poderiam ser mais díspares das dadas por partes significativas da sociedade.

É lícito roubar? Enganar o próximo? Usar de má-fé? Desviar dinheiro para contas pessoais? Não!... Não? Às vezes parece que sim...

Todos nós sabemos de casos em que tais actos ficaram impunes e conhecemos pessoas que - apesar da sua moralidade duvidosa e dos seus comportamentos dúbios, no que à rectidão e à honestidade dizem respeito - são respeitadas e que, como sói dizer-se, venceram na vida. Apesar disso, achamo-nos incapazes de alguma vez proceder de forma análoga ou de adoptar comportamentos semelhantes e, portanto, julgamo-nos detentores de uma rectidão moral e de um comportamento à prova de qualquer reparo. Mas...

Pode-se espancar uma criança ou vê-lo fazer sem actuar? Recusar apoio aos desfavorecidos? Escorraçar etnias minoritárias da nossa vizinhança? Discriminar quem é diferente? Nada fazer para obviar ao sofrimento, à fome e às privações de tanta gente e de tantas e tantas crianças? Desprezar os fracos, os pobres, os doentes? Linchar, metafórica ou literalmente, pessoas antes de estas serem sujeitas a um julgamento justo e imparcial? Virar as costas aos desprotegidos, aos toxicodependentes, a todos aqueles que são um grão de areia na nossa máquina alucinante a que chamamos Vida?

Lavamos daqui as nossas mãos porque não é connosco, não nos afecta directamente, porventura; no entanto, de alguns destes pecados somos ou fomos, em alguma altura, culpados, sem excepção. Mas queremos viver a nossa vida, querida perfeita, de sucesso, porque supérflua e sem significado real, ou seja, sem conteúdo. Na era do dinheiro de plástico também os nossos sentimentos o são, as nossas emoções são fingidas e já não nos escandalizamos realmente com a pobreza nem nos indignamos já com a injustiça.

Esquecemos muito facilmente - ou, se calhar, nunca aprendemos - a lição mais bonita da vida, nas palavras de John Donne: Nenhum homem é uma ilha isolada; cada homem é uma partícula do continente, uma parte da terra; se um torrão é arrastado para o mar, a Europa fica diminuída, como se fosse um promontório, como se fosse a casa dos teus amigos ou a tua própria; a morte de qualquer homem diminui-me, porque sou parte do género humano. E por isso não perguntes por quem os sinos dobram; eles dobram por ti.

Os sinos dobram já por nós!...

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