Cem Anos

sexta-feira, outubro 02, 2015

Outrora agora

Nas noites cálidas de Verão em que demorava a adormecer, ouvia entretido os sons que vinham do exterior, deitado na cama, sem sequer o peso do lençol por sobre o seu corpo de criança. As janelas ficavam abertas, dado o calor excessivo, e podia ouvir-se distintamente o cricri dos grilos, o uh-uh da coruja, o piu-piu dalgum pássaro mais atrasado. Às dez horas da noite, ouvia-se o canudo da fábrica que indicava o fim de um turno e o começo de outro, precedido e seguido de grande vozearia e dalgum alvoroço de carros (poucos) e motas (muitas). Depois, o rumor ia esmorecendo até um quase silêncio e era por essa altura que, todos os dias, melhor dizendo, todas as noites, ao longe, não na estrada perto de casa, mas numa outra qualquer estrada mais distante, se ouvia o som de uma motorizada que com certeza transportava o seu condutor de regresso ao lar após mais uma jornada de trabalho. Esse ruído, se bem que atenuado pela distância, era ainda assim distintivo, quebrando o quase-silêncio que entretanto se formara na noite e, sendo um som que em qualquer outra altura do dia, em qualquer outra circunstância, seria irritante e incomodativo, ali, naquele instante, irrompendo pela janela aberta transportado pela massa de calor que o abafava, parecia-lhe antes um alegre rumorejar de uma fresca cascata de água. Noite após noite, inconscientemente, ficava à espera dessa inopinada aparição sonora antes de relaxar e de sentir que poderia finalmente deixar-se adormecer.

Tudo isto compreendeu-o hoje, trinta e cinco anos depois, ao ouvir por acaso no silêncio da noite o som de uma motorizada lá fora enquanto adormecia ao colo a filha de dois anos. Foi feliz então. Ou então foi feliz então agora. Teve saudades de si e quis poder embalar o seu eu de há trinta e cinco anos e aconselhar-lhe calma porque coisas boas também lhe iriam suceder.

Desejou poder saber quem era e o que faria hoje o dono daquele motociclo cujo ronronar nocturno o embalava nas noites de meninice. Ter-se-ão cruzado alguma vez?

Quem diria que o som esbatido de uma motorizada ao longe, estilhaçando o silêncio de uma quente noite de Estio, pudesse provocar-lhe tantas sensações?

Aconchegou a sua filha adormecida ao peito, deu-lhe um beijo na testa e foi feliz, então e agora…

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