Cem Anos

terça-feira, novembro 18, 2003

O Sofá de Johnny

Johnny estava em casa, a ler um livro. As suas aulas tinham já acabado por aquele dia e não lhe apetecia encetar, tão cedo, o estudo diário. Estava um dia chuvoso, frio, inóspito. Lá fora. Porque dentro de sua casa respirava-se um ar quente de confiança, de paz. Chamam-lhe lar.
O livro que estava a ler não conseguia prender-lhe completamente a atenção: era uma biografia de Richard Feynman, um físico americano laureado com o Prémio Nobel em 1965. Não porque a obra fosse enfadonha, pelo contrário, mas muito simplesmente porque hoje Johnny não conseguia concentrar-se devidamente. Fechou então o livro e espreguiçou-se no sofá.
Pensou na Joana, sua colega de escola. Desejou que ela estivesse ali. Que vontade de a ter por perto, de falar com ela, de a abraçar, de beijar-lhe os lábios. Que vontade... ali, estendido no sofá, a Joana era dele e ele acariciava-a cuidadosamente, desviava-lhe os cabelos da face, desvendava-lhe o sorriso, surpreendia-se com o brilho nos olhos da sua musa, aspirava-lhe o hálito a amor. Quente, poderoso. Ali, no sofá.
Acordou da sua letargia com o barulho, subitamente forte, da chuva a açoitar as janelas da sala. Balde de água fria. Levantou-se para observar o espectáculo do temporal e perdeu algo. Doeu-lhe. De pé, junto à janela, ele sabia que, ali, a Joana já não era dele. Nem junto à mesa da sala de jantar. Tão pouco na cozinha ou no quarto ou na garagem. Nem fora de sua casa, na escola, no autocarro ou no cinema. Em lado nenhum. Em lado nenhum excepto no sofá - no seu sofá.
Aos dezassete anos, o seu reino resumia-se a um conjunto de molas gastas e velhas, coroadas por almofadões de couro. Velho e gasto. Voltou ao sofá, com o objectivo de recuperar a sua musa, mas o encanto havia-se quebrado e também ali ela já não se encontrava. Não se preocupou excessivamente; sabia que isso acontecia de forma cíclica. Como qualquer deusa, também a sua Joana tem direito às birras e aos caprichos que nós, seres inferiores, consideramos demonstrações de carácter divino e de personalidade celestial. Também ela tem direito a ausentar-se de quando em vez, de cuidar das suas coisinhas, de ter a sua privacidade, de se recolher ao seu sofá. Ao seu sofá?!
De repente, Johnny sentiu o seu estômago atravessado por uma espada de gelo. Ocorrera-lhe que também Joana teria o seu sofá - ou talvez fosse uma cadeira ou um banco ou a cama, não importa -, onde se encontraria com o seu deus. Um deus com certeza forte, imponente, espirituoso, inteligente, alegre, descomplexado, extrovertido. Não um rapazinho misantropo, tímido, com medo de ser feliz e mesmo a jeito para que as coisas más lhe aconteçam, como ele sentia que era. E o problema era ele sentir que era.
Saber! Crueldade suprema! Como desejava Johnny não saber, não perceber, não se rir ao espelho da sua alma... como desejava ele! Se não podia ser um deus, como ele achava que a Joana gostaria que fosse, então, pelo menos, que lhe fosse vedado o conhecimento, a sabedoria, a realidade. Que fosse brindado com a ignorância, com o alheamento. Desde que não soubesse...
Com raiva, virou as costas ao temporal que grassava lá fora, pegou no livro que estivera a ler e atirou-o violentamente contra a parede, e abandonou-se com estrondo no sofá - no seu sofá.
Estava sol, estava um dia quente, e a Joana estava ali, a seu lado, olhando-o com carinho. Johnny acariciou-a cuidadosamente, desviou-lhe os cabelos da face, desvendou-lhe o sorriso, surpreendeu-se com o brilho nos olhos da sua musa, aspirou-lhe o hálito a amor. Poderoso, quente. Ali, no sofá.

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