Cem Anos

domingo, fevereiro 12, 2006

Senti-me feliz, momentaneamente feliz

Acordei cedo e fui até à marginal. Apetecia-me ar, apetecia-me o mar. O dia não estava com boa cara: nublado, frio, a ameaçar chuva a qualquer momento. Mas agasalhei-me bem, meti-me no carro e cheguei rapidamente. Era muito cedo, andava pouca gente na rua, não havia trânsito e foi fácil arranjar estacionamento.

Comecei a andar lenta, vagarosamente, fui andando ao longo do passeio, paralelamente à praia, embora me apetecesse fazer como as gaivotas e andar em círculos. O cheiro da maresia era apenas pressentido, vindo na aragem fria que me enregelava o cérebro. Tentei agasalhar-me melhor, estreitei o cachecol ainda mais à volta da cara, abotoei o casaco.

Sempre me fascinou o mar. É tanto. Muitas vezes, é tudo. Hoje era um desses dias. Não resisti, entrei na praia, descalcei-me, senti a areia nos pés e pensei como era bom sentir a areia nos pés. Fui em direcção ao mar. Era um chamamento, não consegui resistir, o mar atrai-me como um magneto atrai o ferro. As gaivotas estavam hoje particularmente activas. Será que havia peixe ali por perto? Não sei, sei só que andavam muitas, muitíssimas gaivotas em suaves bailados, ora subindo ora descendo, ora para a esquerda ora para a direita, e também essa dança me parecia encantatória, hipnótica.

Já bem perto da água, era agora o cheiro da maresia que se me impunha, enchia-me os pulmões de ar fresco e alimentava-me o âmago. Senti que realmente me poderia alimentar deste ar fresco de sal, de mar, de vida. Inalei o mais que pude e senti-me feliz, momentaneamente feliz.

Neste estado de quase transe, pus-me a escutar. Não havia muito para ouvir, o tempo frio afastava as pessoas e a praia estava praticamente deserta. O piar das gaivotas, sim, o piar das gaivotas ia cortando o silêncio; também o barulho de um ou outro carro, ao longe, era perceptível; mas havia um barulho mais forte, mais sereno, mais suave: a melodia doce das ondas que se espraiavam na areia.

Puxei as calças e fui molhar os pés. A água estava fria, muito fria, e soube-me tão bem sentir a água fria nos pés. Fiquei à espera da próxima onda, fiquei à espera de que me voltasse a molhar, e depois da próxima e da próxima e da próxima... Aproveitei para molhar também as mãos e levei um pouquinho de água aos lábios. Ah, o sal... E senti-me feliz, momentaneamente feliz.

Abri os braços, respirei fundo, olhei para o mar lá longe e senti-me crescer. Senti que algures cá dentro houve uma flor que se abriu para o sol. Senti uma luz que se acendeu. Senti uma fogueira que se ateou. Senti-me mais alto, mais forte, mais importante. Nesse momento, um raio de sol conseguiu atravessar as nuvens e foi iluminar a prata do mar, fazendo-o faiscar. Percorreu o seu caminho ao longo da imensidão do oceano e chegou até mim, iluminando o meu estanho, fazendo-me cintilar. Estava resplandecente, achei que deveria estar resplendoroso, cheguei a temer encandear os carros que passavam lá em cima na rua.

Comecei a correr ao longo da praia, o vento frio a alimentar-me o diafragma, a água a baptizar-me ciclicamente, o sol a aquecer-me as costas. Corri, corri, corri... sentia que se corresse o suficiente poderia dar um salto no tempo, poderia avançar, queimar etapas, deixar o antigo eu para trás, abraçar-me lá à frente, ao meu novo eu. Portanto corri, corri, corri... e sentia-me feliz, momentaneamente feliz.

O raio de sol foi abafado pelas nuvens e eu cansei-me. Os pés doíam-me, estavam gelados e também arranhados pela areia grossa. Havia mais carros na rua, fazendo barulho, e algumas pessoas passeavam pela marginal olhando para mim, perplexas. As gaivotas voaram para longe, o mar alterou-se, ficando mais hostil, e começou a chover. Sentei-me cansado, mesmo muito cansado. Senti-me cansado, mesmo muito cansado. Ainda a arfar, lamentei não ter conseguido dar um salto no tempo e amaldiçoei o meu eu que me agarrou, sugou, impediu de voar. Ao longe, ainda bem longe, vi o meu novo eu que voava junto com as gaivotas, brincava em círculos, dançava aleatoriamente, investia na vertical, planava para descansar.

E senti-me infeliz, eternamente infeliz...

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