Cem Anos

quinta-feira, março 23, 2006

Sabemos ambos

Como detesto ver-te assim. Como detesto ver-te assim. Diz-me, diz-me o que se passa… se não podes confiar em mim, em quem confiarás? Deixa-me segurar-te na mão, deixa-me oferecer-te o meu ombro. Confia, confia em mim, sabes que eu estou aqui para ti, sabes que eu estou aqui…

Vejo-te em baixo, vejo-te completamente de rastos, vejo-te com os olhos baços, as mãos trémulas, o sorriso mortiço. Vejo, vejo que sofres, vejo que te custa respirar. Vejo que amargas, que ruminas desgostos. Vejo que estás sob um peso demasiado grande para conseguires continuar sem ajuda. E eu estou aqui, aceita a minha mão…

Lembro o teu riso franco, o teu humor sempre fresco, a gargalhada espontânea, vinda do princípio do mundo, do princípio da inocência, antes da vida. Lembro os teus olhos vivos, um verde sempre esperança, um brilho sempre desejo, uma flamância sempre anseio. Lembro as tuas mãos calmas, fortes, serenas, suaves, doces comigo, pacientes comigo, lembro as tuas mãos comigo. Dá-me agora a tua mão, eu estou aqui…

Sabes que se cai, toda a gente cai, todos caímos, todos temos as nossas feridas por sarar, as nossas chagas por curar, as nossas penas por voar. Todos já estivemos no escuro, na floresta ventosa, no deserto escaldante, no gelo antárctico, na solidão tenebrosa. Já fomos deportados, condenados, ostracizados, amputados, negligenciados, castigados, amaldiçoados. Muitos de nós ainda lá estão, no chão, no breu, no frio, no exílio, no calvário. Muitos de nós já saíram, levantaram-se, encontraram o sol, o calor, o lar, o conforto de uma mão que se estendeu para eles. Aceita o meu amplexo, o meu abraço, o meu sorriso e reconstrói a tua vida sobre os meus alicerces. Eu estou aqui, eu estou aqui, pega na minha mão…

Eu sei, eu sei que chegará um dia, uma altura, um tempo, em que conseguirás respirar sem dor, em que os teus olhos readquirirão o seu brilho, as tuas mãos a sua calma, o teu sorriso a sua força. Eu sei que chegará, chegará um dia, uma altura, um tempo, em que conseguirás andar de novo, correr de novo, voar de novo. E eu sei, sabemos ambos, que um dia não precisarás mais dos meus alicerces para refundares a tua vida, chegará uma altura em que não precisarás mais do meu ombro para chorares, chegará um tempo em que não precisarás da minha mão para te levantares. E eu sei, sabemos ambos, que nesse dia, nessa altura, nesse tempo, breve, voarás já sem penas. Correrás sem dores. Sorrirás sem amargura.

E eu… eu pedir-te-ei então para voltares brevemente. Pedir-te-ei um ombro. Pedir-te-ei uma mão.

E eu sei, sabemos ambos, que tu já não estarás aqui…

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