Cem Anos

segunda-feira, outubro 30, 2006

Filme

Estava um sol envergonhado. Uma brisa a descambar fazia-se sentir na pele desprotegida. As ruas estavam movimentadas, as pessoas borbulhavam em efervescência, os carros alinhavam-se, monocórdicos. As lojas estavam ainda abertas, mas poucas tinham clientes entre portas. Um cego tocava o seu realejo à porta da igreja enquanto uma semente de cão deambulava pelas redondezas inóspitas de cestinho cingido ao focinho. Uma criança, aos berros, era arrastada pela imprudente mãe e duas velhinhas entretinham-se a mirar uma montra com roupas ousadas. Uma nuvem calou momentaneamente a vergonha do sol.

Na sombra assim expandida, junto aos edifícios, apareceu então um velhinho com uma criança pela mão. Vinham devagar, saboreando os passos, observando o que viam. O velho falava e a menina escutava-o, atenta, continuando paulatinamente na sua caminhada. Percebia-se que o idoso já vivera melhores dias: a camisola que trazia estava coçada nos cotovelos, as calças enrugadas como a sua cute, as botas pediam para se juntarem à sua aposentação. Mas um aprumo, um aprumo apesar de tudo, era evidente no seu porte. A menina – sua neta? – estava, por seu lado, irrepreensivelmente vestida, vestidinho de xadrez, sapatos de verniz, laçarotes no cabelo. Ele parecia serenamente conformado, contas feitas, consciência tranquila; a menina não parecia demasiado confiante, demasiado optimista, parecia de uma maturidade precoce.

(Ele parecia amargo, contas por saldar, vítima suprema da injustiça; a menina parecia arrogante, convencida, completamente infantil, apesar da idade).

Estacaram. Detiveram-se encostados à parede de uma casa comercial, mas de costas voltadas para a sua montra. Pareciam dois perdigueiros à procura de um qualquer rasto. Havia algo no ar, no ambiente, que lhes chamara a atenção. Olhavam em todas as direcções, por entre a multidão, sobre a multidão, através da multidão. Continuavam de mãos dadas, mas perscrutavam à sua volta, sem palavras, inquietos com a procura do que não tinham a certeza. O sol desenvergonhou-se e aqueceu-lhes o corpo.

Encontraram! Encontraram-me! Do outro lado da rua, receoso do encontro, vislumbraram-me por entre as pessoas que desfilavam, parcialmente escondido atrás de um lampião público. Por momentos, pensei que me iriam acolher bem; pensei que me iriam chamar para o seu amplexo; pensei que me convidariam para uma trindade de mãos dadas, passeando serenamente pelas ruas. Nesses momentos sorriram-me. Acenaram-me. Cederam... a minha suposição estava certa, haviam-me perdoado e recolheram-me no seu regaço.

(Mas, afinal, após uma curta hesitação, olharam para mim com desdém, voltaram-me as costas com frieza declarada e seguiram caminho; a sua felicidade era agora evidente; o seu desprezo também...).