Cem Anos

terça-feira, setembro 11, 2012

Ser eu feliz

Na noite estival vislumbro ao longe a luz da cidadela de um navio que me aconchega em mim a necessidade de me preencher e de ser um dia completo e um dia relevante e um dia em que não seja mais uma tentativa ou mais um esboço de alguém que talvez tenha sido mais do que uma sombra numa caverna mais do que um fogo-fátuo por instantes brilhante por instantes maravilhoso para sempre apagado por esta eterna brisa que entra em mim como vento gélido cortante sufocante que me atrofia a vontade de respirar ou os pulmões o que é o mesmo talvez pois com pulmões atrofiados atrofia-se-me a vontade de respirar e com a vontade de respirar atrofiada atrofiam-se-me os pulmões a prazo e a prazo é exactamente como eu me sinto mas depois imagino que não esteja a ser deveras original pois a prazo estamos todos porém a pergunta será se todos terão assim tão presente e constante esta sensação ou se serão poucos os que têm a consciência vívida e plena deste facto tão vil que se transforma em característica de personalidade ou pensando melhor em sucedâneo de uma personalidade que se tentou construir mas que resiste a deixar-se completar também porque não se sabe eu não sei por onde continuar o que mais acrescentar já que ainda por cima não se consegue eu não consigo eliminar alguns alicerces e algumas bases de que me queria libertar de que me embaraço e como será possível envergonharmo-nos de nós e todavia envergonho-me do que construí de partes do que sou mas quero eliminá-las e não consigo quero apagá-las e não consigo quero esquecê-las e não consigo e esta incapacidade humilha-me também duplamente envergonhado e por vezes penso se não poderia se não deveria até libertar-me desta bisonharia e ser eu feliz quero dizer orgulhar-me de mim consciente das falhas e dos defeitos mas orgulhoso de ser eu feliz por ser eu finalmente ser eu feliz contudo logo a seguir sinto a eterna incapacidade de suprir a capacidade de ser eu feliz e antes que as gaivotas venham rasgar o céu virginal desta madrugada que é já quase manhã e antes que a luz da cidadela do navio se extinga no horizonte e também dentro de mim percebo que afinal tudo se resume a um erro de construção pois independentemente do que já estivesse construído em mim eu iria ser sempre incapaz de conseguir ser eu feliz e infelizmente não consigo adquirir num mercado essa funcionalidade tão desejada mas agora sei que mesmo que conseguisse e mesmo que a juntasse à minha construção de uma personalidade tão manca ainda assim ela não funcionaria pois seria como um transplante mal sucedido rejeitado pelo organismo da mesma forma a característica ser eu feliz seria rejeitada pelo meu organismo que nunca soube ser eu feliz nem sabe como funcionar sendo eu feliz e deseja e teme ao mesmo tempo ser eu feliz por considerar que ser eu feliz é tão natural em mim como um pinguim num deserto como um carrossel sem movimento como o Verão sem mar como ser eu feliz.


Contudo em noites estivais como esta a luz distante de cidadelas de navios no horizonte insufla-me uma protovontade de ser eu feliz e até que ela se extinga eu vivo esta felicidade minha.


Encosto a cabeça ao teu ombro e sou eu feliz até as gaivotas virem rasgar o céu da manhã.