Cem Anos

domingo, novembro 23, 2003

Trilho da Ternura

Passei a minha mão por sobre o teu seio
E senti ali confluir toda a energia de uma paixão
Na tua boca procurei o sopro da vida
E encontrei
Sei-o
O vício de te amar repetidamente

Parar?
Talvez
Só para ter o prazer de retomar
Reiniciar o trilho da ternura
Subindo por entre rios de júbilo
Até ao cume

Gritei e ouvi o eco
Teu
Senti-me importante porque contigo
Porque juntos
Nós
Que não desatam

Exaustos iniciámos a descida
E trememos de volúpia
Antevendo
Pressentindo
Escaladas lentas até ao cume
No vício de nos amarmos
Repetidamente

terça-feira, novembro 18, 2003

O Sofá de Johnny

Johnny estava em casa, a ler um livro. As suas aulas tinham já acabado por aquele dia e não lhe apetecia encetar, tão cedo, o estudo diário. Estava um dia chuvoso, frio, inóspito. Lá fora. Porque dentro de sua casa respirava-se um ar quente de confiança, de paz. Chamam-lhe lar.
O livro que estava a ler não conseguia prender-lhe completamente a atenção: era uma biografia de Richard Feynman, um físico americano laureado com o Prémio Nobel em 1965. Não porque a obra fosse enfadonha, pelo contrário, mas muito simplesmente porque hoje Johnny não conseguia concentrar-se devidamente. Fechou então o livro e espreguiçou-se no sofá.
Pensou na Joana, sua colega de escola. Desejou que ela estivesse ali. Que vontade de a ter por perto, de falar com ela, de a abraçar, de beijar-lhe os lábios. Que vontade... ali, estendido no sofá, a Joana era dele e ele acariciava-a cuidadosamente, desviava-lhe os cabelos da face, desvendava-lhe o sorriso, surpreendia-se com o brilho nos olhos da sua musa, aspirava-lhe o hálito a amor. Quente, poderoso. Ali, no sofá.
Acordou da sua letargia com o barulho, subitamente forte, da chuva a açoitar as janelas da sala. Balde de água fria. Levantou-se para observar o espectáculo do temporal e perdeu algo. Doeu-lhe. De pé, junto à janela, ele sabia que, ali, a Joana já não era dele. Nem junto à mesa da sala de jantar. Tão pouco na cozinha ou no quarto ou na garagem. Nem fora de sua casa, na escola, no autocarro ou no cinema. Em lado nenhum. Em lado nenhum excepto no sofá - no seu sofá.
Aos dezassete anos, o seu reino resumia-se a um conjunto de molas gastas e velhas, coroadas por almofadões de couro. Velho e gasto. Voltou ao sofá, com o objectivo de recuperar a sua musa, mas o encanto havia-se quebrado e também ali ela já não se encontrava. Não se preocupou excessivamente; sabia que isso acontecia de forma cíclica. Como qualquer deusa, também a sua Joana tem direito às birras e aos caprichos que nós, seres inferiores, consideramos demonstrações de carácter divino e de personalidade celestial. Também ela tem direito a ausentar-se de quando em vez, de cuidar das suas coisinhas, de ter a sua privacidade, de se recolher ao seu sofá. Ao seu sofá?!
De repente, Johnny sentiu o seu estômago atravessado por uma espada de gelo. Ocorrera-lhe que também Joana teria o seu sofá - ou talvez fosse uma cadeira ou um banco ou a cama, não importa -, onde se encontraria com o seu deus. Um deus com certeza forte, imponente, espirituoso, inteligente, alegre, descomplexado, extrovertido. Não um rapazinho misantropo, tímido, com medo de ser feliz e mesmo a jeito para que as coisas más lhe aconteçam, como ele sentia que era. E o problema era ele sentir que era.
Saber! Crueldade suprema! Como desejava Johnny não saber, não perceber, não se rir ao espelho da sua alma... como desejava ele! Se não podia ser um deus, como ele achava que a Joana gostaria que fosse, então, pelo menos, que lhe fosse vedado o conhecimento, a sabedoria, a realidade. Que fosse brindado com a ignorância, com o alheamento. Desde que não soubesse...
Com raiva, virou as costas ao temporal que grassava lá fora, pegou no livro que estivera a ler e atirou-o violentamente contra a parede, e abandonou-se com estrondo no sofá - no seu sofá.
Estava sol, estava um dia quente, e a Joana estava ali, a seu lado, olhando-o com carinho. Johnny acariciou-a cuidadosamente, desviou-lhe os cabelos da face, desvendou-lhe o sorriso, surpreendeu-se com o brilho nos olhos da sua musa, aspirou-lhe o hálito a amor. Poderoso, quente. Ali, no sofá.

sexta-feira, novembro 14, 2003

A Derrota da Ideia

As palavras ribombam com prazer másculo
Nos devaneios de um cérebro frágil
E revoluteiam-se e rebelam-se e fundem-se
Em orgásticos festins de sons significados

As ideias vergam-se ao poder despótico
Das formas castradoras cerceantes fúteis
De palavras que significam pouco mais que nada
De sons que deixam tudo por dizer

Nesta luta quotidiana insana esquizofrénica
Em que o cérebro frágil se verga vencido
Ficam os restolhos de uma vã existência

Mais reais porém que palavras ribombantes
Que eclodem num fátuo festim de som
E silenciam partes das entranhas estranhas

segunda-feira, novembro 10, 2003

Sopro de Vida

Levantei-me hoje cedo só para poder desfrutar do dia. Que sorte haver dias tão magníficos, aqui, à mão de semear, para nós os podermos gozar em toda a sua plenitude. Estava um tempo espantoso, o céu azul salpicado aqui e ali por pequenas nuvens brancas a fazer lembrar cordeirinhos tresmalhados do rebanho. Sim, abri a janela de par em par, respirei fundo, e lembrei-me do que a minha amiga Enid dizia de céus como este: O dia parece que acabou de chegar, fresquíssimo, da lavandaria . Acabou de chegar, lavadinho, novo, só para nós o podermos utilizar.
Viver apetece mais em dias como este. Passei toda a manhã deslumbrado com a beleza do sol, com a frescura da brisa meiga que me acariciava a face ao ritmo de ondas suaves a espraiarem-se indolentemente no areal molhado, com o chilrear dos pássaros que davam o tom aos meus pensamentos, pretendidos melodiosos. Passeei por entre as flores, jardins de flores, de várias cores, de várias formas, com os mais diversos perfumes... que pena eu não saber o nome das flores; não que desconhecendo o seu nome, a sua beleza saia minimamente diminuída aos meus olhos. Pelo contrário, sem saber o nome daquela flor tão bonita o meu cérebro só se preocupa em apreciar as suas formas, o seu desenho, a sua cor, sentir o cheiro doce que emana, apreciar a harmonia do conjunto; não perde tempo em tentar lembrar-se do nome da flor nem em catalogá-la imediatamente (sabe à partida que tal esforço é inútil). De qualquer forma, assim é mais difícil partilhar a beleza das coisas: para quem me ouve, não é igual eu dizer que vi uma linda flor em vez de dizer que vi uma linda tulipa ou um lindo cravo ou uma linda camélia ou o que seja.
Se calhar, vou ter que aprender o nome das flores só para que quem me ouça possa perceber o alcance das sensações de que desfrutei ao contemplá-las. Para mim, não é importante etiquetá-las; mas o que é deveras importante é fazer chegar aos outros os meus sentimentos, fazer com que eles apreendam na plenitude (na extensão e no rigor) os meus pensamentos e emoções, nomeadamente quando contemplo uma flor belíssima mas cujo nome ignoro. Tarefa que - mais do que árdua - é inglória... e não me refiro já ao campo (deveria dizer jardim?) das flores pois esta é uma limitação que - algo paradoxalmente - se estende a muitas outras situações.
Na verdade, vemo-nos frequentemente perante a incapacidade de conseguir transmitir aos outros aquilo que pensamos. As palavras são limitadas e nunca encaixam perfeitamente naquilo que sentimos porque é impossível definir toda uma plêiade de sensações, emoções, afectos, gostos, impressões numa só palavra, numa frase que seja. É amor o que sinto? Não sei... é algo tão forte, tão magnífico, tão complexo, tão profundo, tão arrasador, tão bonito que não consigo descrever. E depois, a palavra amor o que significa? Amor, amar, amo-te... conseguem estas palavras exprimir o que sinto? Tudo aquilo que sinto resume-se à palavra amor? ‘Amo-te’ é tudo aquilo que eu tenho aqui dentro para te dizer? Como verbalizar toda a caterva de outros sentimentos que estão cá dentro e que me extravasam sempre que estou contigo?
Impossível, eu sei... possam os meus olhos dizer-to, possam as minhas mãos falar-te, possa a minha boca insuflar-te o sopro da minha vida... que é tua.

sexta-feira, novembro 07, 2003

Tristeza

O rapaz estava deitado no chão
Palha na boca
Triste
Sem alma
Sou eu que o sinto
Olhava a lua
As estrelas
Contava os segundos
Para nada
Estava porque não podia não estar

Olhou-me e disse-me
Nada
Que tenho para dizer?
Suspirou e fez um gesto
De resignação
Quando a chuva começou
Não se mexeu
E respirou-a nos poros
Podia abrigar-se
De quê?

Sentei-me a seu lado
Olhei a lua
Que já se tinha ausentado
E ele começou a murmurar
Cantigas de antanho
Falavam da noite
Da sorte
Da melodia da chuva
Falavam
Falavam de nós

Tempos
Outros tempos
Em que corríamos
Sentíamos
Vivíamos
A cara molhada pela chuva
Olhou-me
Podia acabar com tudo
Desistir de ser eu
Para quê?

Um de nós pediu desculpa
Ao outro de nós
Mas as palavras foram sufocadas
Pelo trovão
Que cortou a paz
Atingido por um relâmpago
Levantou-se de repente
Correu pela escuridão
Na ânsia de sentir
A dor

Afastou-se tentando apanhar as estrelas
Subir à lua
Apanhar a chuva no peito
Mas sabia-se tarde
Não precisou de contar os segundos
Fiquei sozinho à chuva
Porque parei de correr?
Ele havia de voltar
E eu desejei que ele não voltasse
Para quê?

segunda-feira, novembro 03, 2003

Ilhas e Pontes

É difícil, hodiernamente, ser-se coerente com a nossa personalidade e comportamento moral; numa altura em que a honestidade, a justiça e a honra são - mais do que palavras -atitudes e comportamentos em desuso, torna-se complicado adoptar uma moral, uma filosofia em que entrem aqueles valores sem nos sentirmos deslocados no espaço, quiçá no tempo.

Numa era em que o sucesso individual está sobrevalorizado e em que a riqueza, a ambição, a promoção sócio-profissional são valores absolutos, isto é, são um fim em si mesmas, damos connosco a pensar se estamos desajustados da sociedade moderna ou se, por outro lado, esta mesma sociedade entrou numa crise de valores. A verdade é que somos hoje, cada vez mais, colocados perante situações para as quais as nossas respostas não poderiam ser mais díspares das dadas por partes significativas da sociedade.

É lícito roubar? Enganar o próximo? Usar de má-fé? Desviar dinheiro para contas pessoais? Não!... Não? Às vezes parece que sim...

Todos nós sabemos de casos em que tais actos ficaram impunes e conhecemos pessoas que - apesar da sua moralidade duvidosa e dos seus comportamentos dúbios, no que à rectidão e à honestidade dizem respeito - são respeitadas e que, como sói dizer-se, venceram na vida. Apesar disso, achamo-nos incapazes de alguma vez proceder de forma análoga ou de adoptar comportamentos semelhantes e, portanto, julgamo-nos detentores de uma rectidão moral e de um comportamento à prova de qualquer reparo. Mas...

Pode-se espancar uma criança ou vê-lo fazer sem actuar? Recusar apoio aos desfavorecidos? Escorraçar etnias minoritárias da nossa vizinhança? Discriminar quem é diferente? Nada fazer para obviar ao sofrimento, à fome e às privações de tanta gente e de tantas e tantas crianças? Desprezar os fracos, os pobres, os doentes? Linchar, metafórica ou literalmente, pessoas antes de estas serem sujeitas a um julgamento justo e imparcial? Virar as costas aos desprotegidos, aos toxicodependentes, a todos aqueles que são um grão de areia na nossa máquina alucinante a que chamamos Vida?

Lavamos daqui as nossas mãos porque não é connosco, não nos afecta directamente, porventura; no entanto, de alguns destes pecados somos ou fomos, em alguma altura, culpados, sem excepção. Mas queremos viver a nossa vida, querida perfeita, de sucesso, porque supérflua e sem significado real, ou seja, sem conteúdo. Na era do dinheiro de plástico também os nossos sentimentos o são, as nossas emoções são fingidas e já não nos escandalizamos realmente com a pobreza nem nos indignamos já com a injustiça.

Esquecemos muito facilmente - ou, se calhar, nunca aprendemos - a lição mais bonita da vida, nas palavras de John Donne: Nenhum homem é uma ilha isolada; cada homem é uma partícula do continente, uma parte da terra; se um torrão é arrastado para o mar, a Europa fica diminuída, como se fosse um promontório, como se fosse a casa dos teus amigos ou a tua própria; a morte de qualquer homem diminui-me, porque sou parte do género humano. E por isso não perguntes por quem os sinos dobram; eles dobram por ti.

Os sinos dobram já por nós!...